16. A CONVIVÊNCIA COM MEUS PRIMOS
Fazendo um balanço da minha vida de estudante desde que fiquei morando na casa de Nenê, não avancei muito. Em 1958, eu tinha doze anos e estava cursando o 4o. ano primário. Em 1959, aos 13 anos, fiz exames que me permitiram concluir o 5o. ano. Em 1960, aos 14 anos, passei a frequentar o cursinho preparatório para ingresso no Curso Ginasial. Esse mini-vestibular da época, só aconteceu no final desse ano, de formas que em termos de continuidade foi como se eu tivesse parado de estudar. Em 1961, aos 15 anos, passei a frequentar o 1o. ano Ginasial, mas não fui até o final do ano por causa do ferimento no pé que me impedia de calçar sapatos e também pela situação de fuga. Somente em 1962, aos 16 anos é que voltei a estudar no I.E.A.
Felizmente, a lei educacional da época não penalizava os alunos com atraso escolar. Não havia essa rigidez atrelada à idade/série que vemos hoje. O que se exigia era o conhecimento básico para se ir em frente. O que importava era o que eu tinha aprendido e não a idade que eu tinha.
Depois que foi resolvida a situação na casa de Nenê minha mãe resolveu deixar-me na casa de meu tio Abdias, irmão mais velho de meu pai, e não fui para Caracaraí. O final do ano de 1961 estava próximo e meu deslocamento (Manaus/Caracaraí/Manaus) em períodos muito próximos, acarretaria muitas despesas para papai. Eu deveria dar continuidade aos estudos no I.E.A. em 1962 e deveria estar em Manaus no início do ano para proceder a matrícula e outras providências necessárias para voltar a estudar.
Fui muito bem recebida na casa dele por sua esposa Raimunda, a quem eu chamava de Tia Raimunda porque nessa época era muito comum as esposas dos tios serem chamadas assim, embora não tivessem parentesco consanguíneo com os sobrinhos. E meus quatro primos: Nilson, que tinha a minha idade; Nilce, chamada de Chiquita; Nilzia, chamada de Nildinha e Sílvia, chamada de Silvinha. Foi um ano muito bom, porque estreitei os laços com meus primos e com a família de meu pai.
Tia Raimunda era uma pessoa muito alegre e tinha uma profunda gratidão por papai. Ela contava muitas histórias de como meu pai ajudou o irmão em situações difíceis que a família enfrentou para morar em Manaus.
A casa de meu tio ficava na Rua Tarumã, entre as ruas Joaquim Nabuco e Major Gabriel. Para ir até ao I.E.A. eu não precisava pegar ônibus, pois não era muito longe.
Durante o período que fiquei na casa de meu tio Abdias, aproximadamente um ano e meio, fiz um curso de datilografia numa escola muito afamada: a Escola de Datilografia Hunderwood. À época, quem sabia manusear uma máquina de escrever teria emprego garantido no comércio ou em locais que utilizassem esse equipamento. Equivalia ao nosso computador de hoje. Isso valeu-me algumas oportunidades de trabalho quando fui morar em Boa Vista.
Meu primo Nilson tem a mesma idade que eu, pois nascemos no mesmo mês e ano. Eu, no dia 24/05 e ele no dia 26/05. As suas irmãs Nilce, Nílzia e Sílvia são mais novas que eu. Nilce e Nílzia estudavam ainda no Primário, no Grupo Escolar “Euclides da Cunha”. Nilson já estudava no Colégio “Dom Bosco”, que era particular. Nilson sempre foi muito estudioso e gostava muito de Matemática. Isso lhe valeu, mais tarde, ingressar no Banco do Brasil após ter sido aprovado em concurso público. E ele só tinha 17 anos. Conseguiu ingressar porque quando o Banco o convocou, ele acabara de completar 18 anos. Foi uma festa na família e o resultado da sua dedicação aos estudos.
Tia Raimunda costurava “pra fora”, isto é, aceitava encomendas de roupas a serem feitas sob medida. Naquela época, era comum haver mulheres que faziam esse tipo de trabalho em casa, uma vez que a indústria e o comércio ainda não haviam descoberto que havia uma clientela que eles podiam explorar. E foi com minha Tia Raimunda que aprendi a fazer vestidos e camisas para homem. A única coisa que não consegui aprender foi fazer calças. Esse conhecimento foi precioso para mim, moça pobre, pois não tinha dinheiro para pagar uma costureira para fazer minhas roupas. Mal conseguia comprar o material para fazer um vestido ou uma blusa! E as máquinas eram manuais. Principalmente da marca SINGER, que era á única marca vendida em Manaus, nessa época. Eu ajudava minha tia na confecção das encomendas, fazendo o trabalho manual: pregar botões e enfeites, fazer bainhas. Em troca, ela me ensinava a cortar o pano e a costurá-los.
Prima Nilce gostava de trabalhos manuais e foi fazer um curso de flores de papel. Fazia tão bem esse trabalho que recebia muitas encomendas para fazer aquelas grinaldas usadas no período dos Finados. Ela começava a fazê-las em Agosto para poder dar conta dos pedidos e eu a ajudava também. Mas nunca gostei muito desse tipo de trabalho manual. Eu gostava mesmo era de costurar: linhas e agulhas eram os meus materiais preferidos. Tanto é que foi no I.E.A. que aprendi a bordar. Fazia parte do currículo ginasial a disciplina TRABALHOS MANUAIS. E foi lá que aprendi a fazer um monte de coisas que mais tarde me ajudaram como dona de casa e mãe.
Nílzia não era muito afeita a esse tipo de trabalho manual. Como era bem mais nova não tínhamos muita intimidade de adolescente. Com minha prima Nilce eu conversava mais sobre tudo, principalmente, dos possíveis pretendentes a namorados.
Minha prima Nilce arranjou um namorado que trabalhava em uma loja conhecida como A PERNABUCANA, localizada no centro de Manaus. Mas encontravam-se às escondidas, pois Tio Abdias jamais iria aceitar que ela namorasse, principalmente porque ainda era considerada muito nova para isso (tinha só 15 anos).
E eu, na minha adolescência, com os hormônios em ebulição, assim como meu primo Nilson, estávamos a mercê um do outro. Não éramos indiferentes nessa questão de gostar um do outro, mas procurávamos esconder dos outros esse sentimento que aflorava em nós. Como ele tinha ciúme até de suas irmãs, eu me abstinha de qualquer situação que pudesse ser desastrosa para mim. Como por exemplo, beijá-lo. O máximo que eu permitia era um beijinho rápido, mesmo porque tinha medo de ser flagrada nessa situação. Não saberia qual seria a reação de minhas primas ou dos tios.
Eu tinha só 16 anos, mas tinha noção perfeita do que deveria ou não fazer. Nílson também. Ele era muito consciente de que não deveríamos ir além de um abraço. Nossas conversas eram rápidas. Na frente dos outros moradores da casa, mantínhamos uma relação de primos. Nada que pudesse levar os outros a perceberem que algo a mais havia entre nós. Creio que o temor das consequências, o não querer decepcionar nossos pais e a ideia de que casar naquela idade não era o futuro que nós queríamos, principalmente eu, foi que serviu de freio para não nos permitir maiores intimidades. Apesar de tudo, sabíamos o que queríamos: estudar, conseguir um bom trabalho que pudesse nos proporcionar uma vida financeira estável. Um casamento para reparar um erro de adolescentes não estava nos nosso planos e por isso, mantínhamos um certa distância.
Não sei se meus tios, principalmente Tia Raimunda, havia percebido alguma coisa, porque nunca ouvi dela nenhuma admoestação nesse sentido.
Minha estada na casa de Tio Abdias devolveu-me a paz de espírito e o equilíbrio emocional que não tive durante os dois últimos anos que morei na casa de Nenê. O ambiente da família era de camaradagem entre os primos e respeito para com os mais velhos. Cada um de nós tínhamos responsabilidades a cumprir na organização da casa e o fazíamos sem maiores problemas.
Mas, ao chegar o final do ano de 1962, voltei para casa de papai, em Caracaraí, definitivamente. Achei natural essa tomada de decisão. Nunca me passou pela mente que o motivo possa ter sido a desconfiança ou certeza de que a minha presença na casa de Tio Abdias poderia vir a ser um problema sério para mim e para o Nílson. Nossos pais morreram e nunca perguntei a eles se haviam percebido algo nesse sentido.