17. PAUSA (nos estudos) PARA DESCANSO E UMA SURPRESA
Em 1963, minha mãe resolveu que eu voltaria para casa em Caracaraí. Meu pai já estava pensando em se mudar para a capital Boa Vista, mas ainda precisava organizar melhor seus negócios. Fiquei sem estudar porque não havia escola em Caracaraí que oferecesse o nível de estudo para que eu desse continuidade a ele.
A cidade de Caracaraí, se é que podíamos chamá-la assim, mais parecia um vilarejo. Erguida às margens do Rio Branco, era formada por duas ruas: a “avenida” principal, mais tarde denominada Dr. Zany, que vinha a ser a reta final da estrada que liga Boa Vista à Caracaraí (BR-174). A outra rua, da qual não lembro o nome, era onde ficava a nossa casa.
A primeira casa que moramos em Caracaraí, era feita de taipa (parede feita de treliça com enchimento de barro) e coberta com palha de buriti. Ao lado desta, papai mandou construir, de alvenaria, uma sala bem grande onde funcionava o comércio. Lá ele vendia de tudo. Depois, ele construiu na parte de trás desta sala, dois quartos, uma sala e a cozinha. A casa antiga foi utilizada para depósito.
Tenho boas recordações desse período em que morei nesse vilarejo. Não havia muito para fazer, mas fiz boas amizades. Dentre elas, uma moça chamada Delzira, que casou-se com um rapaz cujo nome não lembro, mas era conhecido como Sarapó.
Por não ter muito em que me ocupar, eu procurava preencher meu tempo com várias coisas. Por exemplo: descobri que a Igreja de Nossa Senhora do Livramento ficava fechada a maior parte do tempo porque o padre responsável por ela só aparecia uma vez no ano para fazer casamento e batizados. Então, eu resolvi que iria fazer alguma coisa para movimentar a vila. Junto com a amiga Delzira e mais outras mocinhas que faziam parte do grupo, fomos nas casas dos moradores, convidá-los para participar das novenas que íamos fazer uma vez por semana, na capela da santa.
Como eu havia estudado em colégio católico, eu tinha noção de como organizar tais eventos. Bastava ter um terço e rezar ave-marias e pais-nossos de acordo com as continhas do terço, diante da imagem de Nossa Senhora e acender velas. Missa, eu sabia que só o padre poderia realizá-la, mas novena, qualquer um poderia fazê-lo.
As novenas começaram mas não duraram muito tempo. Primeiro, porque o povo do lugar não era muito afeito a essas reuniões e, além disso, estavam sendo convidados por uma mocinha que mal tinha chegado na vila e não tinha sido recomendada pelo padre. Como as novenas tiveram vida curta, passei a procurar outras atividades que preenchessem meu tempo. Mas, o que fazer num lugar que não tinha nada de entretenimento para uma garota da minha idade? Nem livros para ler, nem rádio para ouvir música, nada, nada.
Um dia, remexendo um velho baú onde minha mãe guardava várias coisas, achei um livro bem grosso, de capa preta. Era uma Bíblia! Sabe aquela sensação gostosa de ter achado um objeto de desejo de muitos anos? Foi o que senti: uma alegria imensa. Agora eu ia poder ler o livro de onde aquela freira se baseava para contar as histórias nas aulas de catecismo! E do qual ela dizia que só o Papa podia lê-lo. Haviam se passado dez anos desde então. Eu estava com dezessete anos e tinha tempo para me dedicar à leitura tão sonhada deste livro.
Perguntei à minha mãe como aquele livro tinha vindo parar naquele baú e ela contou-me a seguinte história:
Quando papai, mamãe e meu irmão empreenderam a viagem para o então Território Federal de Rio Branco, em 1958, subindo o Rio Branco, aportaram na vila de Santa Maria do Boiaçu, a primeira vila que papai encontrou. Como se tratava de um barco desconhecido para os moradores, papai recebeu a visita do então administrador do lugar, conhecido como Tenente Roberto. Ele queria saber quem eram as pessoas que estavam naquele barco e qual o objetivo de estarem ali. Meu pai deu as informações pedidas e acrescentou que estava à procura de um novo lugar para fixar residência. Tenente Roberto aconselhou-o a seguir em frente, subindo o rio, até chegar em Caracaraí, que era uma vila com mais moradores e possivelmente com maior chance de oferecer condições de sobrevivência para a família.
Antes de papai seguir viagem, recebeu das mãos de Tenente Roberto uma Bíblia como presente. Anos depois, quando passei a frequentar a Igreja Batista Regular de Boa Vista, conheci Tenente Roberto, pois ele era evangélico e membro dessa igreja.
Meu pai nunca foi frequentador de igreja e muito menos minha mãe. Mas sempre percebi que suas ações eram norteadas por princípios cristãos que naturalmente receberam de seus pais. Os princípios básicos do que é certo e errado, baseado nos dez mandamentos me foram incutidos por minha mãe, desde a mais tenra idade. Mas foi só. Por isso, fiquei curiosa para saber como aquela Bíblia havia aparecido naquele baú, uma vez que não me lembrava de mamãe ter comprado em Manaus esse livro. Naquela época, a Bíblia não se encontrava para vender nas livrarias. E os crentes a obtinham porque só as igrejas evangélicas é que a tinham para fornecer aos seus fiéis.
A partir desse dia, comecei a ler a Bíblia. Comecei pelo começo: o livro de Gênesis. Até então, eu tinha curiosidade em saber os detalhes das histórias a respeito da criação do mundo, sobre o dilúvio, sobre os personagens como Adão, Eva, Noé, Abraão, Moisés e tantos outros de quem ouvira falar.