19. DESCOBRINDO TALENTOS
As minhas atividades na cidade onde passei a morar foram aquelas normais para uma adolescente. Continuei os estudos no GEC, como era conhecido o Ginásio Euclides da Cunha. Apesar de já estar com 18 anos, eu não me sentia um peixe fora d’água na escola, porque meus colegas de aula estavam na mesma faixa de idade da minha, entre 17 e 20 anos.
O período de estudos no GEC foi marcante, principalmente, porque eu já estava pensando em como ajudar meus pais financeiramente. Mas, o que fazer? O comércio, na época, era muito restrito e não havia oportunidade de emprego nesta área. Em geral, eram os próprios donos das casas comerciais juntamente com os membros da família (esposa, filhos) que trabalhavam nas lojas. O governo do Território agora, era comandado pelos militares e o ingresso como funcionário dependia de conhecer as pessoas que estavam à frente da administração dele. O meu futuro profissional se apresentava incerto. O único conhecimento específico que eu tinha era um curso de datilografia que eu havia feito em Manaus. Eu sabia bem como usar uma máquina de escrever manual, o que equivalia a dominar o conhecimento de um equipamento moderno para a época. Fora isso, eu não possuía nenhum outro conhecimento que eu pudesse apresentar como ferramenta de trabalho. Ainda nem tinha terminado o curso ginasial! Mas, como eu sabia que o conhecimento, mesmo aquele que eu estava adquirindo na escola deveria me ajudar a arranjar trabalho, eu não desanimava e me dedicava com afinco aos estudos. Além disso, minha mãe sempre dizia: “Não temos dinheiro, nem bens materiais. A única coisa que podemos deixar para você são seus estudos. Portanto, aproveite e estude muito.”
No GEC tive bons professores. Dentre eles, cito a Professora de Português, Maria do Carmo Fraxe; o professor de Organização Social e Política do Brasil (O.S.P.B.), Rubeldimar Azevedo; o professor de História Geral e do Brasil, Severino Gonçalo Gomes Cavalcante. Esses três professores foram os principais mentores da minha visão de mundo e formação profissional. “Como assim?”, alguém há de perguntar. “O curso ginasial não era profissionalizante e você está afirmando que esses professores lhe deram formação profissional?” Explico: a professora Maria Fraxe, como era conhecida, era uma professora de pouca conversa com os alunos e muito exigente nas suas aulas. Mas tinha uma maneira muito própria de ensinar. Suas explicações a respeito dos assuntos de Português eram tão claras que eu não tinha dificuldades em entendê-las. Por isso, até hoje os assuntos referentes à Sintaxe da Língua Portuguesa vêm à minha mente de modo bastante claro e não tenho dificuldades em análise sintática. Aliado ao meu empenho em aprender, isso valeu-me, anos mais tarde, a oportunidade de dar aulas de Português.
O professor de O.S.P.B. e também de Educação Moral e Cívica, Rubeldimar Azevedo, foi o responsável pela minha construção crítica a respeito do modo como o Brasil estava sendo conduzido. Estávamos em plena ditadura militar e não era permitido falar mal de quem estava no poder. Podia dar cadeia. Mas o professor Rubeldimar usava a Constituição e a História dos povos para nos fazer raciocinar a respeito da liberdade que cada cidadão deve ter. Não me lembro dele se referir à ditadura militar como um desrespeito ao cidadão brasileiro. Mas as análises que ele fazia baseado na Constituição da época me levaram a concluir que uma ditadura, por mais que traga alguns benefícios pontuais, é uma situação política indesejável para qualquer nação.
Já o professor de História, Severino Cavalcante, foi o responsável por eu me descobrir professora.
Eu não sabia, mas nessa época, as escolas enfrentavam um problema sério: a falta de professores. E isto era explicável: o Território Federal de Roraima (atual Estado de Roraima) é localizado no extremo Norte do Brasil e o acesso à área, na época, só se dava por meio de aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) ou da única empresa aérea, a Cruzeiro do Sul, que só disponibilizava uma viagem por semana para Boa Vista. Nem todo mundo tinha condições de comprar uma passagem aérea. O acesso por terra não existia. Apenas durante o inverno os barcos que transportavam mercadorias é que chegavam em Boa Vista. No verão, os barcos só conseguiam chegar até a cidade de Caracaraí.
Essa situação proporcionava aos administradores e moradores do lugar, a falta de muita coisa, inclusive de pessoas habilitadas para trabalhar como professor. O único curso existente, além do Primário e Ginasial, era o curso Normal, que habilitava os professores que atuavam no Curso Primário. Os professores que atuavam no Curso Ginasial não possuíam, na sua grande maioria, habilitação feita em curso superior, como era o caso dos meus professores no GEC. Mas dominavam o conhecimento das disciplinas que ensinavam e por isso formavam o corpo docente das duas únicas escolas que ofereciam o curso ginasial: a Escola Normal Monteiro Lobato e o Ginásio Euclides da Cunha.
Entretanto, a cidade estava crescendo. As famílias procuravam as escolas para matricular seus filhos e não havia professores habilitados em número suficientes para atender à demanda. O jeito que o Governo do Território encontrou foi aproveitar pessoas que demonstravam possuir algum conhecimento e que queriam trabalhar como docentes. O professor Severino Cavalcante, além de exercer a docência, trabalhava na sede da Secretaria de Educação do Governo e naturalmente conhecia bem essa situação.
Como professor, ele utilizava suas aulas para identificar, entre seus alunos, futuros profissionais que poderiam ser aproveitados como professores. Só que não sabíamos disso!
Tive o Professor Severino Cavalcante como meu professor de História nos três anos do Ginásio, feitos no GEC. Lembro-me que no ano (1965) em que fiz a 3a série ginasial (equivalente hoje ao 8o ano) ele instituiu a prova oral como um dos meios de avaliação mensal, o que era permitido na época.
Como as turmas não eram muito grandes (20 a 25 alunos) ele elaborava um calendário das provas orais a ser aplicada durante o ano. As provas orais compunham-se de um tema ou assunto que estava previsto para estudo no mês e deveria ser explanada pelo aluno em determinado dia. Em outras palavras: todos teriam que dar uma aula para os colegas. Como não sabíamos qual seria o mês em que determinado aluno faria a tal prova oral, estudávamos muito para não sermos surpreendidos com uma reprovação, pois éramos sorteados uma semana antes. Mas ele nos dava o direito de escolher o tema ou assunto dentre os que já havíamos estudado. A média mínima para aprovação era 60 (sessenta), mas o resultado do conhecimento que essa média traduzia era de 90 (noventa), tal a exigência na profundidade do conhecimento a ser demonstrado. Em outras palavras: esse 60 valia 90. Com isso, ele conseguia: 1. que seus alunos se dedicassem ao estudo da disciplina História; 2. identificar alunos que poderiam ser indicados para atuar como professores nas escolas públicas.
E foi assim que o Prof. Severino Cavalcante (e eu) me descobriu como professora. Nunca vou esquecer do dia e do tema da aula: o assunto que escolhi foi sobre o povo hebreu, o qual fazia parte dos assuntos de História Geral que deveríamos estudar. Como eu queria impressionar o professor e obter uma boa nota na prova, estudei muito sobre esse povo e a principal fonte de pesquisa foi a Bíblia. Tínhamos uma semana para preparar a tal aula. E para apresentá-la treinei muito desenhar o contorno dos mapas da Europa, Ásia e África em volta do Mar Mediterrâneo, pois pretendia desenhá-lo no quadro de giz, na hora da apresentação. Era o único recurso didático de que dispunha e o mapa era a melhor opção para fazer a plateia entender minha aula. E foi assim que, além de receber uma nota muito boa e elogios à parte, fui indicada para no ano seguinte fazer parte do corpo docente do GEC. E eu ainda nem havia concluído o curso ginasial.