Skip to main content
Literatura BrasileiraPasso a Passo da Leitura Literária

DOM CASMURRO – Capítulos 16 e 17

By 30 June 20122 Comments

DOM CASMURRO – Capítulos 16

Nestes Capítulos, Bentinho passa a dar informações sobre seu futuro sogro.

O administrador interino

Pádua era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade dele. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu num bilhete de loteria, dez contos de réis. A primeira ideia do Pádua, quando lhe saiu o prêmio, foi comprar um cavalo do Cabo1, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpétua para a família, mandar vir da Europa alguns pássaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que ali está à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa e guardar o que sobrasse para acudir às moléstias grandes. Pádua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxílio. Não foi só nessa ocasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida do Pádua. Escutai; a anedota é curta.

O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou em reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu joias à mulher, nos dias de festas matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã. Pediu à minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia sofrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a coisa nenhuma.

– Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar atrás… Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público?

– Que público, Sr. Pádua? Deixe-se disse; seja homem. Lembre-se que sua mulher não tem outra pessoa… e que há de fazer? Pois um homem… Seja homem, ande.

Pádua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova, ou então no quintal, ao pé do poço, como se a ideia da morte teimasse nele. D. Fortunata ralhava:

– Joãozinho, você é criança?

Mas, tanto lhe ouvia falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir à minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pai de família, imitar a mulher e a filha… Pádua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe.

– Vontade minha, não; é obrigação sua.

– Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido à parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéu em cortejar a vizinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Pádua começou a interessar-se pelos negócios domésticos, a cuidar dos passarinhos, a dormir tranquilo as noites e as tardes, a conversar e dar notícias da rua. A serenidade regressou; atrás dela veio a alegria, um domingo, na figura de dois amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já ele ria, já brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo.

Com o tempo veio um fenômeno interessante. Pádua começou a falar da administração interina, não somente sem as saudades dos honorários, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a héjira2, donde ele contava para diante e para trás.

– No tempo em que eu era administrador…

Ou então:

– Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dois meses antes… Ora espere; a minha administração começou… É isto, mês e meio antes; foi mês e meio antes, não foi mais.

Ou ainda:

– Justamente; havia já seis meses que eu administrava…

Tal é o sabor póstumo das glórias interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o Padre Cabral, que levava tudo para a Escritura, dizia que o vizinho Pádua se dava a lição de Elifás a Jó: “Não desprezes a correção do Senhor; Ele fere e cura.”3

DOM CASMURRO – Capítulo 17

Os vermes

“Ele fere e cura!” Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez4, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.

– Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado a palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos, fosse ainda um modo de roer o roído.

________________________________________________________________________

Notas explicativas.

1 – cavalo do Cabo: No século XIX, os cariocas abastados faziam questão de importar cavalos de raça, que os ingleses criavam no Cabo da Boa Esperança. Eram animais ágeis, elegantes, de grande resistência.

2 – héjira: ponto de partida da cronologia mulçumana que tem como marco a partida de Maomé para Medina, no ano 622 da era cristã.

3 – o trecho a que se refere Machado de Assis, encontra-se no Livro de Jó 5:17-18.

4 – Conta uma lenda que Téfolos, rei de Mísia, ao enfrentar Aquiles durante uma batalha, foi ferido por este. Esta ferida não cicatrizava nunca. Téfolos foi aconselhado por um oráculo a procurar Aquiles, pois Apolo havia dito que ele só seria curado por quem o ferira. Então Téfolos procurou Aquiles, que o curou.

___________________________________________________________________

Interpretação do texto.

  1. Qual era o trabalho do sr. Pádua?
  2. Durante um certo tempo o. Sr. Pádua passou a ganhar um salário maior. Por quê?
  3. Durante esse período, qual foi a atitude do sr. Pádua?
  4. Por quanto tempo ficou o Sr. Pádua ganhando o salário do chefe?
  5. Como o sr. Pádua ficou durante muito tempo exercendo a chefia da sua repartição, achou que isso seria uma situação que tinha vindo para ficar. O que foi que aconteceu depois de 22 meses e qual foi sua reação?
  6. O sr. Pádua cumpriu a promessa de suicidar-se? Relate o que aconteceu depois que ele conversou com  mãe de Bentinho.
  7. Que lição quis nos dar Machado de Assis com esse capítulo?

_______________________________________________________________

Gabarito

  1. Funcionário público.
  2. Porque ficou substituindo o seu chefe durante a ausência desse, o que também lhe deu o direito de ganhar os honorários relativos à chefia que ia exercer.
  3. Passou a gastar com coisas supérfluas e a ostentar uma atitude vaidosa de quem tem muito dinheiro.
  4. Vinte e dois meses ou 01 ano e dez meses.
  5. O chefe efetivo voltara para assumir o posto e o sr. Pádua ficou aflito, pois voltaria a ser um simples funcionário da repartição, além de não receber mais o alto salário que vinha recebendo. Em vista disso, pensou em dar fim a sua vida, pois segundo ele, não aguentaria sofrer a vergonha de voltar a ser um simples funcionário, diante dos vizinhos e de outras pessoas que o conheciam.
  6. Não. O sr. Pádua ficou alguns dias triste, calado, mas aos poucos foi esquecendo o episódio e passou até mesmo a se referir ao período de interinidade como um período que marcou sua vida de funcionário público.
  7. Resposta pessoal. Devemos ser humildes e não deixar que a vaidade nos impeça de ver que existem situações passageiras em nossa vida.

2 Comments

  • coriolano 'p. s. says:

    No texto, qual tema frasal para facilitar a interpretação do texto?

    • admin says:

      Olá, Coriolano! A resposta à sua pergunta sobre o tema frasal dos capítulos 16 e 17 de Dom Casmurro, temos a informar que esta resposta se encontra vinculada à última questão feita sobre a interpretação dos textos. É só conferir.

Leave a Reply