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Literatura BrasileiraPasso a Passo da Leitura Literária

DOM CASMURRO – Capítulo 21 e 22

By 9 March 2013No Comments

DOM CASMURRO – Capítulos 21  e  22

PRIMA JUSTINA

Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera.

– Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe perguntou por mim?

– Perguntou, mas eu disso que você já tinha vindo.

          A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima Justina fosse de biocos1, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha mãe, e também por interesse: minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que estranha.

          Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se eu não esquecera os projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo:

          – Vida de padre é muito bonita.

– Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou rindo.

– Eu gosto do que mamãe quiser.

      – Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse, há cá em casa quem lhe meta isso na cabeça.

          – Quem é?

– Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa com isso; eu também não.

– José Dias? concluí.

– Naturalmente.

          Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima Justina completou a notícia dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara à minha mãe a promessa antiga.

          – Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa; mas como há de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás, falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e que a vida de padre é isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação… Note que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado… Hoje de tarde falou como você não imagina…

          – Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro com a vizinha.

          Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra coisa que não podia dizer. Novamente recomendou que não me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias, e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse:

          – Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa?

– De quê?

– Era capaz de… Suponha que eu não gostasse de ser padre… a senhora podia pedir à mamãe…

          – Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça, e não há nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era pequenino, já ela contava isso a todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas também, pedir outra coisa, não peço. Se ela me consultasse, bem; se ele me dissesse: “Prima Justina, você que acha?”, a minha resposta era: “Prima Glória, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar.” É o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço.

 

DOM CASMURRO – Capítulo 22

SENSAÇÕES ALHEIAS

          Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da próxima festa da Conceição2, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isso me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, era com o gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não creio que fossem ciúmes. Creio antes… sim… sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.

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Notas explicativas:

  1. bioco – mantilha para envolver o rosto, capuz. Aqui está empregada no sentido figurado e quer dizer falsa modéstia.
  2. Festa da Conceição – trata-se da festa de 08 de dezembro, em que se comemora o privilégio de Nossa Senhora ter sido concebida sem o pecado original. É das mais tradicionais festas católicas tributadas à Virgem Maria em todo o Brasil.

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  1. Qual era a opinião de prima Justina a respeito de José Dias?
  2. O que Bentinho pediu que prima Justina fizesse para que ele não fosse para o seminário?
  3. Qual foi a resposta de prima Justina?

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GABARITO

  1. Prima Justina considerava José Dias um intrigante, bajulador, especulador e grosseirão.
  2. Pediu que ela intercedesse justo a sua mãe.
  3. Ela disse que não faria isso e só emitiria sua opinião se fosse consultada.