TEXTO PARA INTERPRETAÇÃO 61 – O nariz (Nível Médio)
“É fácil, no mundo, viver segundo a opinião do mundo; é fácil, igualmente, na solidão, viver segundo nossa própria opinião; o maior homem é aquele que, no meio da multidão, conserva, com perfeita serenidade e nobreza, a mesma independência que desfrutaria na solidão.” (Ralph Waldo Emerson)
O nariz
Era um dentista respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes, mas de uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx1. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.
– O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
– Isto o quê?
– Esse nariz.
– Ah, vi numa vitrina, entrei e comprei.
– Logo você, papai…
Depois do almoço ele foi recostar-se no sofá da sala como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se.
– Tire esse negócio.
– Por quê?
– Brincadeira tem hora.
– Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher interpelou:
– Aonde é que você vai?
– Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
– Mas com esse nariz?
– Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova, você não diria nada. Só porque é um nariz…
– Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”), fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
– Ele enlouqueceu?
– Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi “ele” assim.
Naquela noite, ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois, vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
– Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
– Vou. Aliás, não vou mais tirar este nariz.
– Mas, por quê?
– Por que não?
Dormiu logo. A mulher passou a metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.
– Papai…
– Sim, minha filha.
– Podemos conversar?
– Claro que podemos.
– É sobre esse seu nariz…
– O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
– Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra, um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
– O nariz é meu e vou continuar a usar.
– Mas por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
– Não tem porque não quer…
– Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
– Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
– Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
– Se não faz diferença, por que não usar?
– Mas, mas…
– Minha filha!
– Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.
– Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
– Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento do meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar. Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como antes. Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
– É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…
O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.
Luís Fernando Veríssimo. O Analista de Bagé. Porto Alegre, Editora Palotti, 1981.
Notas explicativas.
- Groucho Marx: personagem de programa humorístico de televisão, nos Estados Unidos.
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A. Interpretação do texto.
- Que acontecimento desencadeia a narrativa?
- Que afirmação do autor do texto, comprova que o dentista não comprara o nariz para fazer humorismo?
- Em que momento do texto a mulher se convenceu de que ele realmente não estava brincando?
- Qual foi o argumento usado pelo dentista para terminar a discussão com a mulher?
- Qual foi a opinião geral a respeito do dentista?
- Qual foi a conclusão definitiva da esposa na primeira noite em que o marido dormiu com o nariz postiço?
- Para encerrar a discussão com a filha, o dentista disse: “Se não faz diferença, por que não usar?” Há lógica na resposta? Explique.
- O que a filha quis dizer com “Você não é mais meu pai!” ?
B. Análise dos personagens, estrutura e linguagem do texto.
- Quem é o protagonista no texto lido?
- Quais são as personagens secundárias do texto?
- Dentre as personagens secundárias, quais são as que interferem efetivamente na narrativa?
- O personagem da história aparece numa dupla perspectiva: o que é e o que parece ser. Assinale com A as características que definem o dentista aos olhos dos outros (após a compra do nariz) e com B a opinião do dentista sobre si mesmo:
a. ( ) ótimo dentista
b. ( ) louco
c. ( ) excêntrico
d. ( ) bom marido
e. ( ) palhaço
f. ( ) bom pai
- Em um determinado momento da narrativa, a esposa e a filha, apesar de sentirem uma certa apreensão, demonstram calma. Transcreva a frase do texto que justifica essa afirmativa.
- Transcreva do texto uma frase que demonstre impaciência do personagem principal.
- Contar uma história é elaborar um texto narrativo, isto é, criar uma sucessão de acontecimentos e emoções. Na história tudo pode acontecer, independente da realidade. A história que você leu se enquadra nesta afirmação? Justifique.
- Ao elaborar uma história, o Autor cria um conflito, isto é, um jogo entre forças contrárias. O enredo só existe enquanto houver choque entre duas ou mais personagens ou de uma personagem com suas ambições e desejos contraditórios. Responda:a. Qual é o elemento gerador do conflito, neste texto?
- Assinale a alternativa que melhor explica o conflito no texto lido.
1. ( ) A sociedade não entende os loucos.
2. ( ) O dentista, mesmo argumentando claramente, não encontra adeptos para o uso do nariz.
3. ( ) O dentista, mesmo argumentando coerentemente, encontra sérias barreiras sociais que tentam impedi-lo de usar o nariz postiço.
4. ( ) A mulher e a filha do dentista são muito chatas e incompreensíveis.
10. Como se dá o desfecho, isto é, qual é o ponto final da história?
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Gabarito:
A. Interpretação do texto.
- Um respeitável dentista compra e passa a usar um nariz de borracha.
- “Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx”.
- Quando o dentista resolveu voltar para o consultório com o nariz de borracha.
- Alegou que se fosse uma gravata, ela não diria nada.
- Supunham que ele estivesse louco, mas ninguém afirmava categoricamente.
- Concluiu que ele enlouquecera.
- Sim, porque se o nariz não interfere em nada no comportamento e atitudes do dentista, tanto faz usar ou não usar.
- Quis dizer que ele não o considerava mais como pai.
B. Análise dos personagens, estrutura e linguagem do texto.
1. O dentista.
2. A esposa, a filha, os clientes, os vizinhos, os amigos, o psiquiatra.
3. A esposa, a filha e o psiquiatra.
4. a. (B) b. (A) c. (A) d. (B) e. (A) f. (B)
5. “Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância.”
6. “O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?”
7. Sim. A narrativa apresenta uma sucessão de acontecimentos, trata de problemas de relacionamento entre os personagens, envolvendo um comportamento que não é comum no dia-a-dia das pessoas.
8. o nariz postiço.
9. alternativa 3
10. o autor transforma o protagonista em um vencedor e deixa o julgamento para o leitor.
Vocês merecem muito sucesso!
O MELHOR LUGAR DA NET.
Vocês são demais!!!!