TEXTO PARA INTERPRETAÇÃO 89 – CARTA AO PREFEITO (Ensino Fundamental)
O texto abaixo foi escrito por um dos mais importantes cronistas brasileiros, o capixaba Rubem Braga. Nesta crônica, o autor brinca com as palavras de uma forma muito original. Descubra o que, de fato, o autor quis dizer. Boa leitura!
CARTA AO PREFEITO
Rio de Janeiro, junho de 1951.
Senhor Prefeito do Distrito Federal
Eu sou um desses estranhos animais que tem por “hábitat” o Rio de Janeiro; ouvi-me, pois, com o devido respeito.
Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes de tudo, um forte. Se, às vezes, saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos (certa vez inventei até de ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a verdade é que sempre volto. Acostumei-me a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá de cima, longe dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.
Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcante, que mora em Caxias e vive armado; moro no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana e, às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boates desta zona e permaneço horas, dentro da penumbra, entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que partem docemente na cabeça dos fieis em torno. E estou vivo.
Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo uma lotação e ir dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro, estupefatos, chamarão de Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens na Central. Eu sou bravo, senhor.
Sei também que não me resta nenhum direito terreno, respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo.; aspiro o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.
Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrara a torneira perfeitamente seca.
Prometeste, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.
Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e libertando Vargas.
Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado.
Obrigado, senhor.
Rubem Braga
(Rubem Braga. Para gostar de ler. São Paulo, Editora Ática, 2002)
Vocabulário:
Penumbra – parcialmente escuro, mal iluminado
Encômios – discurso elogioso, bajulação
- A partir de pistas presentes no texto, o ambiente em que o personagem vive é rural ou urbano? Justifique sua resposta.
- A partir da leitura do texto, podemos afirmar que a crônica foi escrita com a estrutura de uma carta? Justifique sua resposta.
- No texto, o personagem manifesta alguns sentimentos com relação ao local em que vive. Quais são esses sentimentos?
- Ao final do texto, o autor diz: “Prometeste, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.” De fato, o autor quer elogiar o prefeito? Justifique sua resposta.
- Identifique outro trecho da carta, em que foi empregada a ironia.
- A partir das respostas anteriores, qual é a ideia principal do texto?
- Essa crônica foi escrita em 1951, quando a capital do Brasil era a cidade do Rio de Janeiro. Os problemas apresentados na crônica ainda existem na cidade? Dê sua opinião sobre isso.
______________________________________________________________________
GABARITO
Questão 1.
Urbano. O texto fala da cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época em que foi escrito.
Questão 2.
Sim. O texto apresenta local e data, saudação inicial, desenvolvimento da mensagem, despedida e assinatura do remetente.
Questão 3.
O personagem a considera uma cidade perigosa para se viver (sentimento de medo), mas também acha-a linda (sentimento de orgulho) e já acostumou-se com as dificuldades que apresenta (sentimento de aceitação).
Questão 4.
Não. O autor está sendo irônico ao afirmar que as inundações desapareceram da cidade do Rio de Janeiro por uma ação do prefeito em suspender as chuvas. Sabemos que isso não é possível pois as estações do tempo obedecem ao ciclo da natureza de primavera, verão, outono e inverno desenvolvidos num período de três meses aproximadamente.
Questão 5.
“Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana.”
Questão 6.
Chamar a atenção das autoridades da cidade do Rio de Janeiro a respeito da situação perigosa em que vivem os seus moradores quanto à segurança no trânsito e no meio ambiente.
Questão 7.
A resposta correta a essa questão só pode ser dada por alguém que mora na cidade do Rio de Janeiro atualmente. Entretanto, algumas informações atualmente veiculadas pela televisão, jornais e rádios dão pistas de que a situação não mudou muito em relação à descrita nesta crônica.