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Passo a Passo da Leitura Literária

DOM CASMURRO – Capítulo 31

By 29 September 2015No Comments

DOM CASMURRO – Capítulo 31

AS CURIOSIDADES DE CAPITU

         Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:

– Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?

– Não marcou dia, prometeu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus.

Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.

Era também curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de várias espécies, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão1.

– Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.

Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre os outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.

Um dia Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lhe sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações e latins:

– César! Júlio César! Grande homem! Ta quoque, Brute2!

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! Que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércios3!

– E quanto valia cada sestércio?

José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:

– É o maior homem da História!

A pérola de César acendia o olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai; tinha um grande colar, um diadema e brincos.

– São jóias viúvas, como eu, Capitu.

– Quando é que botou estas?

– Foi pelas festas da Coroação4.

– Oh! Conte-me as festas da Coroação!

Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lhe, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá…

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Notas explicativas.

  1. gamão – é um jogo de azar e de algum cálculo, entre dois parceiros, que se joga com quinze tabelas por cada parceiro, sobre um tabuleiro dividido dos dois lados em dois compartimentos com seis subdivisões ou casas cada um.
  2. Júlio César (101-44 a.C.) – ditador romano. Um dos mais astuciosos generais da Antiguidade e autor dos célebres Comentários acerca da guerra que travou contra a Gália, entre 59 e 51 a.C. Depois da campanha gaulesa, regressou a Roma e transformou-se em seu ditador. Morreu assassinado em consequência duma conspiração do Senado romano. Notando a presença de Bruto entre seus matadores, diz as palavras referidas no texto: “Até tu, Bruto!”
  3. Sestércio – é uma “pequena moeda metálica dos antigos romanos que valia dois asses e meio ou um quarto de dinheiro, empregada como unidade monetária, desde as origens de Roma até Constantino; como moeda, foi usada durante a República e em grande parte do Império Romano.
  4. Coroação – D. Pedro I, abdicando em 1831 em favor de seu filho, ainda criança, deu origem ao chamado Período Regencial que durou até 1840, quando a situação política, no Brasil, obrigou a considerar D. Pedro II maior e, portanto, apto a governar. Era a Maioridade. As festas da Coroação revestiram-se de brilho nunca antes visto, nem mesmo na coroação de D. João VI.

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Responda às questões baseado no texto.

1. Por que Capitu “mostrou-se satisfeita” com a ideia de Bentinho ir para a Europa?

2. Bentinho descreve Capitu como curiosa. O dicionário define esta palavra como alguém que se interessa pela vida alheia, bisbilhoteira, indiscreta. O texto, entretanto, nos leva a concluir que Capitu era curiosa no sentido de _________________________

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GABARITO.

1. Porque Bentinho poderia voltar e casar-se com ela; a ida para o seminário tiraria essa possibilidade uma vez que ele se tornaria padre e não poderia casar-se.

2. … aprender coisas novas, ter conhecimento intelectual.

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