DOM CASMURRO – Cap. 36
IDEIA SEM PERNAS E IDEIA SEM BRAÇOS
Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí-las daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é isto… Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a meio, ou se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma coisa; respondeu-me que não. A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la, beijá-la… Ideia só! Ideia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico1um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: “Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca”. E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o verso 6, do cap. II: “A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois”. Vêdes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.
Notas explicativas:
1 – Cânticos: o Cântico dos Cânticos, de Salomão, rei dos israelitas (971 a 932 a.C.) narra os esponsais deste rei com Sulamites, num misto de lirismo e erotismo muito ao gosto oriental.
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DOM CASMURRO – Cap. 37
A ALMA É CHEIA DE MISTÉRIOS
– Padre Cabral estava esperando há muito tempo?
– Hoje não dei lição; tive férias.
Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da minha entrada no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele coisas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir cumprimentar o padre, à tarde, em minha casa.
– Pode, mas para quê?
– Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do padre, é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.
O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a ideia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém; não vivia com rapazes que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia1. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira2e eram patrícios de Pôncio Pilatos3. Não nego que o final do penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.
Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e, caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar, até que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais…
Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava às vezes. “Abre, Nanata! Capitu, abre!” Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco, mas só aparentemente; em verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos. Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado.
Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios.
Notas explicativas:
1 – Lucrécia: dama romana, casada com Tarquínio Colatino, que foi violentada por Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo. Ela não resistiu à desonra e cravou um punhal no peito. O fato desencadeou uma crise que deu origem ao estabelecimento da República em Roma (510 a.C).
2 – artinha doPadre Pereira: Padre Antônio Pereira, religioso que nasceu em 1725, em Mação-Portugal e morreu em data incerta. Escreveu o Novo Método da Gramática Latinapara usa nas escolas da época. Esta obra, posteriormente ficou conhecida com o título Artinha Latina. Machado de Assis se refere a ela nesta passagem, na qual possivelmente teria estudado as primeiras lições de Latim. Esta obra foi amplamente usada e divulgada, como se pode ver pelo número de edições que teve: em 1920, já tinham aparecido 26 edições.
3 – Pôncio Pilatos: governador da Judéia, morto por volta de 39 d.C. Temendo uma revolta, entregou Cristo ao juízes, não sem antes declarar que não lhe encontrava qualquer culpa, inocentando-se, assim, da morte que pouco depois lhe deram.
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DOM CASMURRO– Cap. 38
QUE SUSTO, MEU DEUS!
Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhê-la, perguntava em voz alta:
– Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico?
– Ora, vivam! exclamou o pai.
– Que susto, meu Deus!
Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, os dois lances de há quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo. No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário apostólico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai devia cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:
– Mamãe, jantar, papai chegou!
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- Esses capítulos narram uma situação entre Bentinho e Capitu. O que descreve o cap. 36?
- E o que descreve o capítulo 37?
- Qual o final desse encontro?
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Respostas:
- Bentinho vai à casa de Capitu e a encontra costurando. Na sua mente queria abraçá-la e beijá-la, mas não se sentia encorajado por Capitu para fazê-lo.
- No cap. 37, Capitu puxa conversa com Bentinho, o qual se anima à colocar a ideia de abraçá-la e beijá-la em prática, pegando nas suas mãos e puxando-a para junto de si. Entretanto, encontra alguma resistência por parte dela, mas sem ser agressiva. O pai de Capitu, nesse momento, bate à porta pedindo para entrar e antes que isso aconteça, Capitu, ela mesma, beija Bentinho.
- No capítulo 38, Capitu se comporta como nada tivesse acontecido nos capítulos anteriores. Por isso, Bentinho, no cap. 36, lembra da opinião que João Dias, o agregado, tem de Capitu: oblíqua e dissimulada.
Bom texto de DOM CASMURRO, basta ler com atenção, para compreendê-lo, refere-se a um romance entre dois jovens onde um tem medo de tomar a iniciativa enquanto o outro(a) aguarda pela indecisão do primeiro e assim a trama se arrasta por um bom período.