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Passo a Passo da Leitura Literária

DOM CASMURRO – Cap. 36, 37 e 38

By 14 June 2019One Comment

DOM CASMURRO – Cap. 36

 IDEIA SEM PERNAS E IDEIA SEM BRAÇOS

         Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí-las daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é isto… Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a meio, ou se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma coisa; respondeu-me que não. A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.

Era ocasião de pegá-la, puxá-la, beijá-la… Ideia só! Ideia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico1um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: “Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca”. E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o verso 6, do cap. II: “A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois”. Vêdes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.

 

Notas explicativas:

1 – Cânticos: o Cântico dos Cânticos, de Salomão, rei dos israelitas (971 a 932 a.C.) narra os esponsais deste rei com Sulamites, num misto de lirismo e erotismo muito ao gosto oriental.

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DOM CASMURRO – Cap. 37

A ALMA É CHEIA DE MISTÉRIOS

         – Padre Cabral estava esperando há muito tempo?

– Hoje não dei lição; tive férias.

Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da minha entrada no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele coisas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir cumprimentar o padre, à tarde, em minha casa.

– Pode, mas para quê?

– Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do padre, é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.

O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a ideia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém; não vivia com rapazes que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia1. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira2e eram patrícios de Pôncio Pilatos3. Não nego que o final do penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.

Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e, caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar, até que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais…

Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava às vezes. “Abre, Nanata! Capitu, abre!” Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco, mas só aparentemente; em verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos. Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado.

Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios.

Notas explicativas:

1 – Lucrécia: dama romana, casada com Tarquínio Colatino, que foi violentada por Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo. Ela não resistiu à desonra e cravou um punhal no peito. O fato desencadeou uma crise que deu origem ao estabelecimento da República em Roma (510 a.C).

2 – artinha doPadre Pereira: Padre Antônio Pereira, religioso que nasceu em 1725, em Mação-Portugal e morreu em data incerta. Escreveu o Novo Método da Gramática Latinapara usa nas escolas da época. Esta obra, posteriormente ficou conhecida com o título Artinha Latina. Machado de Assis se refere a ela nesta passagem, na qual possivelmente teria estudado as primeiras lições de Latim. Esta obra foi amplamente usada e divulgada, como se pode ver pelo número de edições que teve: em 1920, já tinham aparecido 26 edições.

3 – Pôncio Pilatos: governador da Judéia, morto por volta de 39 d.C. Temendo uma revolta, entregou Cristo ao juízes, não sem antes declarar que não lhe encontrava qualquer culpa, inocentando-se, assim, da morte que pouco depois lhe deram.

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DOM CASMURRO– Cap. 38

QUE SUSTO, MEU DEUS!

         Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhê-la, perguntava em voz alta:

– Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico?

– Ora, vivam! exclamou o pai.

– Que susto, meu Deus!

Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, os dois lances de há quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo. No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário apostólico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai devia cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:

– Mamãe, jantar, papai chegou!

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  1. Esses capítulos narram uma situação entre Bentinho e Capitu. O que descreve o cap. 36?
  2. E o que descreve o capítulo 37?
  3. Qual o final desse encontro?

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Respostas:

  1. Bentinho vai à casa de Capitu e a encontra costurando. Na sua mente queria abraçá-la e beijá-la, mas não se sentia encorajado por Capitu para fazê-lo.
  2. No cap. 37, Capitu puxa conversa com Bentinho, o qual se anima à colocar a ideia de abraçá-la e beijá-la em prática, pegando nas suas mãos  e puxando-a para junto de si. Entretanto, encontra alguma resistência por parte dela, mas sem ser agressiva.  O pai de Capitu, nesse momento, bate à porta pedindo para entrar e antes que isso aconteça, Capitu, ela mesma, beija Bentinho.
  3. No capítulo 38, Capitu se comporta como nada tivesse acontecido nos capítulos anteriores. Por isso, Bentinho, no cap. 36, lembra da opinião que João Dias, o agregado, tem de Capitu: oblíqua e dissimulada.

 

 

One Comment

  • Francisco Klein says:

    Bom texto de DOM CASMURRO, basta ler com atenção, para compreendê-lo, refere-se a um romance entre dois jovens onde um tem medo de tomar a iniciativa enquanto o outro(a) aguarda pela indecisão do primeiro e assim a trama se arrasta por um bom período.

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