13. A TRANSIÇÃO PARA A PUBERDADE
No decorrer do ano de 1955, papai vendeu a casa que ele havia construído com muito sacrifício, lá no Alto de Nazaré. A movimentação do bar entrara em decadência, não sei exatamente o porquê. O fato é que nos mudamos para uma casa localizada no bairro da Glória, que papai comprara. Essa casa era pequena, feita de madeira como a maioria das casas de família pobre. Tinha uma sala de estar, um quarto, uma sala de jantar, uma cozinha bem espaçosa, banheiro e sanitário dentro de casa, o que era uma novidade, pois em geral, os sanitários da época eram construídos no fundo dos quintais (a chamada fossa negra), pois não havia o sistema de esgoto sanitário nos bairros mais distantes para recolhimento dos dejectos domiciliares. Tal sistema só existia no centro da cidade. Mas nesta casa havia a fossa séptica. Por isso, o sanitário e o banheiro faziam parte do corpo da casa. Acho que mamãe e papai devem ter procurado uma casa para comprar que tivesse esse tipo de fossa, uma vez que sempre moraram no centro da cidade de Manaus, onde havia esgoto sanitário.
Papai continuou a exercer suas atividades comerciais, desta feita, dentro de um barco. Ele passou a viajar na região do Rio Negro, para onde levava mercadorias para vender aos ribeirinhos. Essa venda, em geral, era feita na base da troca por produtos que os moradores das localidades produziam: farinha, ovos, carne seca de animais silvestres e peixes, galinhas, tartarugas, couro de jacaré e de cobra, etc… Esses produtos eram vendidos em Manaus e assim papai obtinha o dinheiro para a manutenção do negócio e da família.
Com a mudança para o novo bairro, também ocorreu a mudança de escola para mim. Foi nessa ocasião que descobri que não sabia ler direito, ou melhor, não dominava a leitura das palavras, apesar de, na escola anterior, estar cursando o 3o ano primário. E esta descoberta foi feita de forma muito humilhante para mim. Foi assim:
Minha mãe levou-me, um dia, para fazer a matrícula no Grupo Escolar “São Luiz de Gonzaga”, que ficava localizado no Bairro de São Raimundo. Era uma escola dirigida por uma freira católica chamada Irmã Ifigênia, de temperamento muito explosivo. Lembro que minha mãe informou à diretora que eu já tinha cursado o 3o ano, mas ficara reprovada. Entretanto, a diretora resolveu aplicar uma pequena provinha para saber até onde iam meus conhecimentos e se estava apta para dar continuidade aos estudos nessa série. O resultado foi o pior possível. A freira chegou à conclusão que eu não sabia ler como deveria e por isso precisava voltar a frequentar o 1o ano, isto é, começar tudo de novo. Na realidade, eu não sabia ler o suficiente para estar cursando o 3o ano. E o sistema de alfabetização da época (década de 1950, século XX) ainda se baseava na memorização das sílabas e era muito chato. Não oferecia nenhum atrativo para as crianças aprenderem a ler.
O veredicto soou aos meus ouvidos como um choque. Comecei a chorar, porque, aos nove anos, entendi a profundidade da questão. Mas o que me apavorava mesmo, é que tinha que fazer parte de uma turma formada por crianças pequenas. Eu seria a maior da turma em altura, a mais velha no meio de um bando de crianças menores. Eu não teria contacto com alunos da minha idade, pois eles faziam parte das turmas mais adiantadas.
Então, enchi-me de coragem e perguntei se eu não poderia frequentar a turma do 1o ano pela manhã e o 2o ano à tarde. Prometi que iria aprender a ler antes do final do ano e iria dar conta de aprender tudo que fosse dado no 2o ano. A freira aceitou, mas com uma condição: caso eu não aprendesse a ler até o final daquele ano, no ano seguinte eu teria que voltar ao 1o ano e dessa vez sem frequentar as duas séries simultaneamente.
Foi a partir desse episódio que tomei como objetivo de vida que iria me empenhar nos estudos para nunca mais ficar reprovada. Cumpri o prometido: aprendi a ler e fui aprovada no final do ano para cursar o 3o ano.
Estudei nesta escola durante três anos. Fiz o 1o e 2o ano ao mesmo tempo (1956); o 3o e o 4o ano (1957 e 1958, respectivamente). Foi um período de muitas descobertas.
Estudava nesta escola, um menino, que morava próximo à nossa casa. Era alto, esbelto, moreno, de feições delicadas que muito me agradavam. Eu estudava numa classe de 3o ano e ele fazia o 4o ano. E descobri que eu também não lhe era indiferente, porque passamos a fazer o trajeto para a escola, juntos. Íamos a pé. Nessas idas e vindas, conversávamos sobre tudo. Em determinado momento, até íamos de mãos dadas, o que na época, significava que estávamos namorando. E eu só tinha onze anos! Minha memória não guardou seu nome, mas o seu rosto o tenho registrado até hoje em minhas lembranças.
Na minha mente ainda ecoava a situação vivida aos cinco anos (ataque sexual), de formas que não o deixava se aproximar muito de mim. Ele, entretanto, devia ser tão inexperiente quanto eu, pois jamais ultrapassou a barreira que eu lhe impunha. Mas, as emoções eram prazerosas. Eu estava descobrindo o prazer descrito por Machado de Assis nos primeiros capítulos de sua obra “Dom Casmurro” (capítulos 12 e 13). Naturalmente, só li “Dom Casmurro”, anos depois, quando já estava fazendo o curso superior de Letras.
Mas, meu namoro de criança desfez-se. Em 1958, meu pai resolveu que deixaria Manaus para tentar a vida no antigo Território Federal do Rio Branco (atualmente Estado de Roraima). Vendeu a casa em que morávamos e seguiu viagem a bordo do barco que possuía, levando muita mercadoria para vender aos ribeirinhos. Com ele foram apenas minha mãe e meu irmão Manoel, então com apenas seis anos. Como eu estava estudando, papai não quis levar-me junto, pois ele não conhecia a região e não quis interromper meus estudos.
Esta decisão não deve ter sido fácil para meus pais, mas certamente eles tinham a consciência de que meus estudos eram muito importantes para mim e valeria o sacrifício de me deixar aos cuidados de terceiros.