14. UMA NOVA FASE DA VIDA
Aos doze anos, separei-me da minha família e fui morar com uma amiga de minha mãe, conhecida como Nenê. Nunca soube seu nome verdadeiro.
Sua casa era de madeira e fora construída por seu próprio marido que era carpinteiro. Seu nome era Veriano e, nessa época, soube que trabalhava na Petrobrás. A Petrobrás estava fazendo pesquisas nas matas da Amazônia e ele conseguira o emprego de carpinteiro. Acho que não ganhava muito, pois Nenê trabalhava lavando roupas para algumas famílias, para ajudar na despesa da casa.
Nenê tinha seis filhos: cinco meninos e uma menina. A diferença de idade entre eles era de, aproximadamente, um ano a um ano e meio. Isso equivale a dizer que Nenê todo ano paria um filho. Seu marido só vinha para casa durante as férias do seu trabalho. E como, naquela época, não existia pílula anticoncepcional, o resultado era que ela sempre ficava grávida após o término das férias do marido.
Veriano era um homem de pouca conversa e até onde me lembro, o relacionamento entre ele e a esposa deixava transparecer que amor não havia. Talvez uma certa tolerância. Até os filhos tinham medo dele. Creio que as longas ausências do pai contribuíram para não haver aprofundamento nos laços familiares.
A casa de Nenê ficava na Av. Ayrão, no bairro Presidente Vargas, conhecido à época como Matinha. Essa avenida tem início no Bairro 14 de Janeiro e estende-se até às margens do igarapé de São Raimundo. A casa ficava próximo ao início da Av. João Coelho, que mais tarde tornou-se prolongamento da Av. Constantino Nery, ficando assim conhecida. Lembro-me de uma igreja evangélica localizada bem na esquina da rua que passava em frente da casa de Nenê e que ainda hoje existe lá.
A decisão de meus pais em deixar-me morando na casa de Nenê deveu-se ao fato de que eu ainda estudava no Grupo Escolar “São Luiz de Gonzaga”, no Bairro de São Raimundo e precisava, agora, utilizar ônibus para chegar até a escola. Os irmãos de meu pai, em sua maioria, moravam muito longe do perímetro da escola. Eu teria que utilizar dois ônibus de linhas diferentes cada vez que me deslocasse para chegar até à escola e voltar para casa. Esse foi o motivo que levou minha mãe deixar-me aos cuidados de sua amiga Nenê. Ficando lá, eu só precisava utilizar um ônibus que fazia um único trajeto entre minha casa e a escola.
No início do ano de 1959, deixei o Grupo Escolar “São Luiz de Gonzaga” e fui matriculada numa escola particular de um professor chamado Odilon que preparava os alunos para ingressarem no Curso Ginasial. Era o 5o ano com cara de preparatório ao Exame de Admissão. Naquele tempo, para se ingressar nesse nível de ensino nas poucas escolas públicas que existiam em Manaus (Instituto de Educação do Amazonas e Colégio D. Pedro II), os alunos faziam um exame chamado de “Exame de Admissão”. O curso primário encerrava-se no 5o. ano e eu ainda não tinha concluído essa etapa, mas meus conhecimentos segundo esse professor, já equivaliam aos do 5o. ano e por isso fui encaminhada à Secretaria de Educação para fazer um exame que atestasse esses conhecimentos. O fato é que fui aprovada e recebi o histórico escolar que atestava a conclusão do curso primário.
Aos treze anos eu pensava em continuar estudando. Nem passava por minha mente parar de estudar. E essa decisão ficava cada vez mais forte, ao perceber como era sofrida e difícil a vida de mulher que não tinha conhecimento para ganhar melhor. O meu espelho era a situação de Nenê: ela mal sabia ler e escrever, tinha sido empregada doméstica antes de casar-se e agora, mãe de seis filhos, tinha que lavar roupa dos outros para ganhar uns trocados para comprar o necessário para si e para os filhos. Acho que o dinheiro que o marido mandava era pouco e por isso ela precisava fazer esse serviço, que era o único que podia fazer em casa, para sobreviver. Lavar roupa para fora, como se dizia, era uma atividade muito exercida por mulheres pobres. Ainda não estava popularizada a máquina de lavar roupas, tão conhecida e útil nas casa brasileiras, atualmente.
Aprendi lições preciosas para a minha vida durante o período em que morei na casa de Nenê. Lá, aprendi a cuidar de crianças, pois haviam seis com idade entre dez anos e recém-nascido. Como ela era “lavadeira”, eu a ajudava nessa tarefa. Aprendi a lavar roupas, numa época em que não existia máquina de lavar roupas e nem ferro elétrico. As roupas eram lavadas à mão com sabão em barra (não existia sabão em pó) e passadas com ferro a carvão. As roupas brancas ou muito encardidas eram fervidas dentro de uma lata de alumínio, mergulhadas numa mistura de água, sabão e soda cáustica. Para fervê-las, fazíamos uma fogueirinha com pedaços de madeira seca (lenha).
As mocinhas da minha geração, especialmente as de família pobre, eram preparadas para ser mãe e donas de casa. Por isso, aprendi a cozinhar (o trivial), lavar, passar roupas, cuidar de crianças, limpar e arrumar uma casa. Tarefas que em casa de mamãe eu não fazia, mesmo quando voltei novamente para casa de meus pais. Por participar desses afazeres domésticos, que me cansavam muito, é que eu estava cada vez mais determinada a não querer aquele tipo de vida para mim.
Apesar de tudo, eu não considerava que Nenê me explorava ao envolver-me nas tarefas domésticas. Fazia tudo de bom grado.
Por essa época (1961), eu já estava estudando no Instituto de Educação do Amazonas. Havia me preparado durante todo o ano (1960) em um cursinho promovido pelos alunos do próprio Instituto e fui aprovada. O Instituto de Educação do Amazonas (I.E.A.) oferecia dois cursos: o Ginasial e o Curso Normal. O curso ginasial equivalia às quatro últimas séries do Ensino Fundamental atual; o Curso Normal equivalia ao Curso Pedagógico de Ensino Médio, que preparava os professores para lecionarem no Ensino Primário. O cursinho no qual me preparei no I.E.A. foi fundamental para a minha aprovação no Exame de Admissão. Os professores eram sempre os alunos do último ano do Curso Normal que estavam fazendo estágio e tínhamos sempre aulas separadas, das disciplinas que compunham o exame: Português, Matemática, Geografia e História.
Quando fui aprovada no Exame para ingresso no I.E.A. deparei-me com uma exigência do colégio: o fardamento.
Naquela época, nenhum aluno podia frequentar a escola sem estar fardado e não havia distribuição, pelo governo, de fardas e livros didáticos. As famílias teriam que providenciar esses materiais se quisessem que seus filhos continuassem seus estudos na escola pública. Até mesmo nas escolas onde eu havia estudado anteriormente não lembro de ser permitido a entrada de alunos sem o devido fardamento. Havia organização e disciplina, o que não vemos hoje na maioria das escolas públicas desse país. E uma das causas é a ideia de que o aluno pode ir de qualquer jeito para a sala de aula. Os defensores dessa ideia não veem que a farda é o que identifica o aluno de determinada instituição e que hoje, a farda é uma forma de identificar quem é quem, principalmente dentro das escolas. Não é por acaso que a falta ou relaxamento dessa exigência por parte das autoridades educacionais e até da justiça, tem ocasionado a invasão de baderneiros, bandidos e até assassinos dentro das escolas. Se todo mundo pode entrar sem farda, não tem como identificar se tal pessoa é ou não aluno da escola.
Para que eu pudesse frequentar o I.E.A. teria, então, de providenciar a farda. Era composta de uma blusa branca de cambraia de linho (um tipo de pano da época), que tinha dois bolsos à altura do peito e em um dos bolsos era bordado as letras IEA; a saia era de casimira azul escuro, toda pregueada e sua altura devia cobrir os joelhos de quem a usasse. Também faziam parte da farda diária um lacinho preto feito de couro, que era usado como uma gravata, e um cinto preto também de couro; sapatos pretos sem nenhum enfeite e meias brancas.
Como não tinha dinheiro para comprar o material para fazer a saia e a blusa, o jeito foi comprá-la de segunda-mão, isto é, uma farda usada por alguém que já não ia mais utilizá-la e que sairia mais barato. Como a cambraia de linho e a casimira são materiais que não se deterioram facilmente, consegui adquirir uma saia e duas blusas de uma vizinha que estava terminando o Curso Normal e que estavam em bom estado de conservação. Até a gravatinha de couro, o cinto e as meias comprei de segunda-mão desta mesma vizinha. Apenas o sapato é que foi comprado novo, na sapataria. Os livros também foram adquiridos num local que vendia livros usados. Pronto, eu estava equipada para iniciar uma nova fase de estudos. E como eu estava feliz e orgulhosa de ter conseguido entrar naquela escola apesar de que alunos de outras escolas do mesmo nível, como o Colégio D. Pedro II, nos chamassem de “cachorrinhas do governo”, por causa do uso da gravatinha de couro e porque a maioria dos alunos eram moças de origem humilde. Eu não me sentia nem um pouco ofendida com isso.
Durante os primeiros anos em que morei na casa da Nenê, ela mesma me compensava das tarefas domésticas ao permitir que eu frequentasse os bailes de finais de semana em um clube que ficava no Boullevard Amazonas, o Internacional Futebol Clube. Eu gostava muito de dançar e aprendera a dançar os vários ritmos da época: valsa, samba, xote e principalmente bolero. Bolero era o ritmo mais tocado e dançado nos bailes da época. E tinha que ser dançado por par formado de homem e mulher.
Para não ficar sentada esperando que algum rapaz viesse me convidar para dançar, tratei de procurar alguém que soubesse dançar bem o bolero e que quisesse também me ter como parceira de dança. Foi assim que conheci Iran. Ele era irmão de uma vizinha, D. Maria. Estudava Direito na Faculdade de Direito do Amazonas e era funcionário do Banco do Brasil. Esse moço era bem mais velho do que eu: eu tinha 13 anos e ele 23. Era feio de dar dó, mas um cavalheiro. E era com ele que eu ia dançar nos bailes desse clube que ficava bem perto da casa onde ele morava, no Beco do Macedo. Todos achavam que nós namorávamos, mas o certo é que eu não sentia as mesmas emoções que senti no episódio do menino da minha infância. Para mim era um amigo e ele nunca me falou sobre suas intenções. Suas atitudes eram muito dúbias quanto a um relacionamento mais concreto. Entretanto, nunca deixou de me visitar, mesmo quando passei a morar na casa de meu tio Abdias, irmão mais velho de meu pai.
Os bailes aconteciam sempre aos sábados e tinham hora para começar e terminar: das 20 às 23 horas. Era o horário permitido, por lei, para menores frequentarem os bailes, na época. E não se vendia bebida alcoólica nesses bailes. Só refrigerante. Os administradores do clube eram muito ciosos do cumprimento dessas regras porque se fossem encontrados infringindo-as teriam o clube fechado. A entrada de pessoas que não faziam parte do clube, nesses bailes, só era permitida se fossem acompanhadas de um sócio. E Iran o era. A música tocada vinha de um aparelho de som da época: a vitrola. As músicas mais tocadas tinham como ritmo o bolero. Compunham-se de vários cantores e compositores, mas aquelas de que eu mais gostava eram as composições de Ray Conniff e sua orquestra. E a música que era sua marca registrada para mim era “Besame mucho”. Ninguém ficava sentado quando tocavam as músicas desse compositor. Porque eram composições feitas para dançar, como dizia ele mesmo em um de seus álbuns.