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Minhas Memórias

Minhas Memórias – cap. 15

By 30 January 2020No Comments

15. DESCOBRINDO O OUTRO LADO DA MOEDA DO SER HUMANO

          Entretanto, o ambiente familiar na casa de Nenê começou a ficar muito tenso quando Veriano deixou de trabalhar na Petrobrás e voltou para casa. 

          Aquele  ano (1961) foi desastroso para mim. Papai e mamãe não podiam vir me ver e nem eu podia ir para a vila onde eles estavam morando, por uma única razão: só se chegava a essa região através do Rio Branco que só era navegável durante o inverno. Não havia estrada. E quando era inverno em Roraima, em Manaus era verão e ainda não havia chegado as férias escolares. Só nos comunicávamos por carta, onde um senhor por nome Rodolfo, que trabalhava nas embarcações da empresa de navegação “Paulo Pereira”, fazia o papel de carteiro. Este homem era o elo entre eu e meus pais, pois serviu de carteiro durante todo o tempo que fiquei longe deles.

          Como já disse, nesse ano aconteceram situações desastrosas para mim. Nenê e o marido não se entendiam. Ele a acusava de tê-lo traído com outro homem, e ainda dizia que eu sabia do fato e que escondera dele isso. Eu nunca vi nenhuma atitude suspeita nesse sentido e mesmo que tivesse visto algo que me levasse a supor tal coisa, jamais iria denunciá-la, pois sempre tinha por lema que “em briga de marido e mulher, ninguém deve meter a colher”. Mas o que aconteceu é que findaram se separando. Nenê ficou com os filhos, pois eram pequenos e para sobreviver continuou a lavar roupa para fora, além de iniciar a venda de verduras e frutas numa pequena feira perto de casa.

          Entretanto, a vida não ficou fácil. Nenê tornou-se uma pessoa muito amarga. Vivia de cara feia ou estava sempre zangada. Hoje eu entendo que ela passou a ter esse comportamento porque sua carga ficou mais pesada. Tinha agora que prover a alimentação e tudo o mais para os seis filhos, pois o pai os abandonara e até onde sei ele não contribuía com nada, pois ficara sem emprego.

          Um dia, eu, ao limpar o quintal da nova casa para onde fomos morar depois da separação do casal, cortei meu pé num pedaço de vidro quebrado. O ferimento inflamou de tal modo que não podia calçar sapatos. Por causa disso, deixei de ir para a escola e em consequência perdi o ano letivo. Minha mãe não sabia de nada disso. Eu não sabia onde encontrar o sr. Rodolfo para mandar uma carta para minha mãe. Apesar de saber onde meu tio Abdias morava, eu não fui lá contar o que estava acontecendo, pois não queria envolvê-lo.

          Mas a gota d’água que transbordou a minha paciência foi um tapa que levei na cara, dado por Nenê. Aconteceu assim:

          Nenê saía todos os dias muito cedo para vender suas verduras e frutas na feira. Eu tinha a responsabilidade de fazer o café das crianças e servi-las. Também era responsável por fazer o mingau da filhinha caçula que tinha apenas 01 ano de idade. Neste dia, a menina acordou um pouco mais tarde que o costume e eu, em razão disso, atrasei a feitura da sua mamadeira. Quando Nenê chegou em casa, eu estava fazendo o alimento. Nesse momento, a menina acordou e começou a chorar, naturalmente com fome. Ao ver sua filha chorando, interpelou-me, perguntando porque eu ainda não havia dado o mingau para sua filha. Mas fez isso de modo grosseiro, como se eu tivesse deixado sua filha com fome, de caso pensado, de propósito. Eu fiquei muito chateada e perguntei, também, de forma grosseira, por que ela mesma não vinha fazer e dar o alimento para sua filha. Em seguida, só senti a dor do tapa que levei. Essa foi a resposta que recebi dela. Fiquei sem ação, mas a revolta cresceu dentro de mim como a fervura da água, devagar, até chegar ao seu ápice dias depois.

          Como é que eu, que não tinha nenhum filho, agora tinha de assumir a responsabilidade de fazer café, almoço e jantar para todos naquela casa? E ainda por cima, estava andando com dificuldades por causa do ferimento no pé, que não sarava e por isso estava perdendo aulas! E o dinheiro que papai mandava, em que é que ela gastava? Não me levava a nenhum lugar onde pudessem tratar daquele ferimento ou para comprar um remédio que curasse a inflamação. Então, comecei a bolar um plano para fugir dali e chegar até a casa dos meus pais em Caracaraí/RR.

          A primeira coisa que fiz, foi localizar onde ela guardava o dinheiro que papai mandava para a minha despesa em Manaus. Ela recebia o dinheiro e eu não tinha acesso a ele porque ela não me dava nem um centavo. Minhas roupas e sapatos estavam muito gastos e eu não tinha muita roupa.

          Naturalmente que o dinheiro que meus pais mandavam eram para ajudar nas minhas despesas na escola e alimentação. Nesse mesmo dia achei algum dinheiro que estava guardado dentro de uma gaveta e calculei que seria o valor que meu pai havia mandado por aqueles dias, pois o sr. Rodolfo tinha ido entregar encomendas que eles haviam mandado, inclusive dinheiro.

          A estratégia que usei para a fuga foi a seguinte: fui até a casa de uma senhora que tinha sido nossa vizinha no Bairro da Glória e com quem eu havia feito uma grande amizade com a sua família. Contei o que tinha acontecido e qual era a minha intenção. Fui bem acolhida e ela me disse que as portas da casa dela estavam abertas para me dar abrigo, até que a situação fosse resolvida. Minha intenção era conseguir uma passagem aérea através da Representação do Governo do Território Federal de Roraima em um dos aviões da FAB que faziam voos regulares para Caracaraí.

          Alguém há de perguntar: mas por que não procurou seus tios ou porque não escreveu uma carta para sua mãe contando tudo?

          Primeiro, eu queria me ver livre o quanto antes do ambiente daquela casa. Se eu fosse procurar alguém da família de meu pai, seria o tio Abdias, que era o único de quem eu sabia onde ficava sua casa. Eu não tinha muito relacionamento com ele e meus primos, e por ele ser policial, eu tinha medo dele.

          Ademais, eu também queria que Nenê tomasse um susto bem grande ao dar por minha falta em casa. Eu queria ir logo para casa de meus pais antes que ela me encontrasse. Enviar uma carta para mamãe demorava meses, pois não havia serviço de Correios para a região onde meus pais moravam. Eu teria que me valer do sr. Rodolfo e eu não queria que outras pessoas soubessem do fato.

          Entretanto, Nenê conseguiu me localizar uma semana depois. Mamãe já tinha sido avisada da situação e logo chegou a Manaus. Não sei como conseguiram avisar meus pais em tão pouco tempo. Quando minha mãe viu o ferimento e o tamanho da inflamação, que ainda não havia sarado e quando lhe contei porque tinha fugido de casa, ela me entendeu e não se mostrou insatisfeita comigo.

          Como já tinha perdido o ano por falta de frequência e estava cursando o 1o. ano Ginasial (atualmente 6o. ano do Ensino Fundamental) mamãe foi até ao Instituto de Educação do Amazonas para informar que eu só voltaria a estudar no ano seguinte (1962) pois já havia perdido muitas aulas e não dava mais para recuperá-las. E fui morar na casa de meu tio Abdias.

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