30. A BÊNÇÃO DE TER A CASA PRÓPRIA
Quando Izabel nasceu, mamãe voltou do interior para Boa Vista e veio morar comigo, para me ajudar durante o período de convalescença do parto. Papai era uma figura ausente, porque continuava no seu trabalho de ir e vir pelo Rio Branco. Ele praticamente morava dentro do barco.
Por causa do nascimento de Izabel, tive que me afastar do trabalho. Como não tinha carteira assinada ou qualquer outro contrato formal de trabalho com o Governo, sabia que não iria receber salário durante o tempo que não fosse trabalhar. Mas, tinha certeza de que Deus não me abandonaria e essa certeza foi confirmada: o diretor da escola, Prof. Severino Cavalcante e a Profa. Diva Bríglia me asseguraram que o meu lugar como professora seria guardado. E providenciaram uma substituta. A minha sorte é que as férias escolares aconteciam por todo o mês de julho, de forma que fiquei longe do trabalho e sem receber salário por dois meses: junho e julho. Em agosto voltei às atividades escolares. Izabel tinha apenas dois meses de vida.
A casinha onde morávamos estava ficando apertada com a chegada dos novos moradores: Izabel e minha mãe. Comecei então a sugerir ao Roberto que precisávamos procurar uma casa maior para morar. Eu precisava da ajuda de mamãe para cuidar de Izabel quando fosse para o trabalho e as condições de moradia não eram adequadas. Paralelo a isso, meu cunhado Moisés estava noivo e Lourdes, sua mãe e dona da casa, deixava transparecer que a casa onde morávamos seria dele, quando casasse. Portanto, tratei de convencer meu marido a procurar uma casa para alugar, cujo aluguel coubesse dentro do nosso orçamento. E fomos morar em uma casa pertencente ao Prof. Jaber Xaud, que ficava numa vila conhecida como “Vila Cocal”, situada na Av. Ene Garcês, em frente à CER (Centrais Elétricas de Roraima, hoje BOVESA). Essa vila ficou assim conhecida por causa de alguns moradores que eram reconhecidos como alcoólatras.
Era uma casa que atendia às nossas necessidades. Tinha três quartos, banheiro interno, uma cozinha pequena e uma sala que funcionava como sala de estar e jantar, além de um quintal de tamanho médio. Passamos a morar nessa casa no início de 1971. Mas eu não pretendia morar por muito tempo em casa alugada. Com mamãe morando em nossa companhia, papai também passou a ficar mais tempo em casa. O trabalho dele rendia o suficiente para não passar necessidades e como não tinha de se preocupar com aluguel, a maior parte da renda que adquiriu ele usou para comprar um terreno num bairro bastante distante do centro da cidade.
Havia um senhor chamado Tobias, que era amigo do pai adotivo de Roberto e que também era Guarda Territorial, isto é, exercia a função de polícia nessa época, assim como o sr. Nélson. Este senhor não tinha família e tornou-se uma pessoa muito amiga da família de Roberto. Ele tinha uma casinha de madeira, (na realidade era um barraco muito tosco) no recém formado bairro de Aparecida e estava vendendo-a. Também tinha um terreno ao lado, que pertencia ao Sr. Salomão Lima e que estava também à venda.
No início da década de 1970, essa parte da cidade de Boa Vista era praticamente inabitada. Haviam poucos moradores, até porque não havia nenhuma estrutura de luz ou água. Quem se aventurasse a morar ali, teria que usar luz de lamparina e água de poço.
Papai comprou o terreno com a casinha de madeira e foi morar lá. E me informou sobre o terreno que ficava ao lado do seu. O sr. Salomão Lima frequentava a mesma igreja que eu. Quando o procurei com a intenção de adquirir o lote, ele imediatamente ofereceu-me condições de pagamento. O preço foi de Cr$ 200,00 (duzentos cruzeiros) que era a moeda da época e paguei em quatro “suaves” prestações de Cr$ 50,00 (cinquenta cruzeiros). O preço não era alto para a época e o valor cabia dentro do meu salário. Assim adquiri o terreno, onde posteriormente construí uma pequena casa de madeira.
Estou dizendo “adquiri”, “construí” porque quando sugeri à Roberto para que comprássemos o tal terreno, ele não gostou da ideia, pois achava o local muito longe do centro da cidade e do nosso local de trabalho. Entretanto, eu não via outra alternativa para adquirir um terreno onde pudéssemos construir nossa própria casa e sairmos do aluguel.
Com a chegada dos militares do 6o BEC, a cidade de Boa Vista começou a crescer e os imóveis mais próximos do centro como nos Bairros de Mecejana, São Pedro, São Francisco e São Vicente começaram a ficar mais caros. E naquela época não havia a facilidade que hoje existe de financiamento pelos Bancos e ou Caixa Econômica. A oferta e condições que o Sr. Salomão Lima estava fazendo dava para adquiri-lo. Como eu havia voltado ao trabalho e o Governo havia aumentado o valor da hora-aula, passei a ganhar bem mais que Roberto. Acho que isso o incomodava, numa época em que os homens não admitiam que suas mulheres ganhassem mais do que eles. Acho que ele se sentia diminuído. E para completar a situação, o dono da casa onde morávamos de aluguel aumentou em 100% o valor do aluguel, quando findou o contrato de 01 ano. Tivemos que retornar à antiga casa, agora numa situação de muito aperto, pois entre pagar o dobro do aluguel e procurar outra casa para alugar, restou-nos voltar a pedir abrigo na antiga casinha onde havíamos ido morar ao casarmos.
Papai, mamãe e meu irmão foram morar no barraco de madeira que havia no terreno que ele comprara. E eu comecei a raciocinar que aquela situação não poderia continuar por muito tempo. Então, comecei a sugerir ao meu marido que deveríamos construir uma casinha de madeira, mesmo que pequena no terreno que eu havia comprado no Bairro de Aparecida. Todas essas ideias e sugestões eu levava para o marido para que ele analisasse e chegasse à conclusão a que eu já havia chegado: era preciso que nós investíssemos na construção de uma casa própria. O meu raciocínio era: ao invés de gastarmos dinheiro pagando aluguel de casa, deveríamos usá-lo na construção de uma casa para nós, mesmo que fosse num bairro considerado o final da cidade de Boa Vista, onde não havia rede de água, luz e esgoto. Mas Roberto não pensava assim. Ele só via a distância entre o lugar e o centro da cidade. Ele dizia que era muito longe, além do fato de não ter água e luz. Eu sabia que enfrentaríamos dificuldades, mas nada que não pudesse ser contornado. E apesar disso, eu olhava para o futuro e sabia que essa distância era apenas uma ilusão de ótica, pois logo, logo o Governo haveria de dotar o bairro dessa infraestrutura. Papai havia mandado cavar um poço no seu terreno e eu também fiz o mesmo.
Enquanto isso, o relacionamento entre eu e Roberto continuava tenso. Eu não podia compreender o posicionamento dele de não querer investir na nossa casa. Afinal, eu queria uma casa própria e certamente o bairro de Aparecida não ficaria tão distante da vida do Centro por muito tempo. Transporte não era problema, pois Roberto havia comprado uma motocicleta que seria o nosso meio de transporte para o deslocamento. Não havia ainda em Boa Vista nenhuma empresa de transporte urbano, e mesmo que houvesse, certamente o Bairro de Aparecida não seria incluído nas rotas, porque durante a década de 1970, o bairro era pouco habitado. Quem fosse morar ali teria que providenciar seu próprio transporte ou teria que se deslocar a pé.
Como Roberto não aceitava a minha sugestão de construir uma casinha de madeira, que era o material mais acessível na época, eu mesma decidi fazê-la com a ajuda de papai. Usei boa parte do meu salário para comprar os materiais e pagar a mão de obra. Roberto não se envolvia e nem perguntava nada sobre isso. Era como se essa parte da nossa vida não interessasse a ele. Lembro que tivemos uma discussão muito forte sobre isso, quando eu disse para ele que iria fazer a casinha. Ele me respondeu: “Você pode até ir pra lá, mas vai sozinha! Eu não vou!” Concluí que ele não enxergava um palmo adiante do nariz, isto é, não via que teríamos de nos empenhar igual faz a formiga: trabalha e junta alimento no verão para não sofrer fome no inverno. Sempre tive essa visão de vida: me preparar para os dias difíceis e para a velhice e isso envolvia estudar, trabalhar, investir em coisas que me ajudariam quando em ficasse velha e sem forças ou doente. O casamento de meu cunhado Moisés estava marcado e precisávamos desocupar a casa dele antes da data marcada para tal.
Afinal, a casinha ficou pronta. Tinha apenas dois cômodos. Uma sala grande e um quarto. O sanitário era tipo fossa negra, pois não havia sistema de esgoto. A luz era de lamparina, que depois substituí por um lampião à gás, muito comum naquela época.
Esse terreno é o mesmo onde morei até mudar-me, em abril/2015, para a casa de Izabel, minha filha mais velha. Do lado esquerdo morava papai, mamãe e meu irmão; do lado direito, morava e mora até hoje a família do sr. Isaías, morador que já se estabelecera ali muito antes de mim. Quando nos mudamos para a nova casa, Izabel já tinha completado dois anos. Isso aconteceu no decorrer do ano de 1972, mas não lembro em que mês que fomos morar ali. E o Roberto não cumpriu a ameaça de não ir morar na nova casa. E não falei mais sobre isso.