DOM CASMURRO – CAPÍTULO 7
“No decorrer de todo o século XIX e em grande parte do século XX, o discursos de gênero foi determinante para a formulação do espaço social por excelência destinado à mulher: o ambiente doméstico.
A vida da mulher realizava-se em toda a sua plenitude quando dotada de “valores e condutas específicas” em uma atuação considerada irrepreensível, seja no relacionamento conjugal, seja na educação dos filhos. A preservação dos bons costumes e da ordem moral esteve intimamente relacionada à organização familiar. A rigidez de padrões de comportamento e o posicionamento conservador em torno da figura feminina definiram a esfera de “criaturas domésticas” destinadas especialmente à maternidade.
Em Minas Gerais, por exemplo, havia, de acordo com o bispado de Diamantina, um eixo moralizador que estabelecia os papeis sociais conferidos às mulheres e suas exatas circunstâncias. Entre as determinações, constava: amar o marido; respeitá-lo como seu chefe; adverti-lo com discrição e prudência; calar quando o vir irritado; tolerar com paciência seus defeitos; e ser prudente e mansa, paciente e carinhosa com toda a família. Idealizada, sacralizada e formalmente aceita como esposa e mãe, a mulher – segregada e alheia – representada em sua condição biológica e rotulada como autêntica administradora do lar, se resignava em sua “elevada” missão. Para ela eram reconhecidas como qualidades: a pureza, a benevolência, a paciência, a doçura, a dedicação, o pudor, a modéstia, entre outros atributos que, invocando a figura da Virgem Maria, permaneciam como valor máximo de abnegação.
Ainda no que se refere à abnegação, a maternidade significava o compromisso máximo assumido pela mulher perante a sociedade de seu tempo. Tratava-se de uma honra, concedida pela via do matrimônio, à plena realização feminina. Enlevada e soberana em sua “condição feminina”. Assim é como Machado de Assis nos faz ver mãe e esposa pelo olhos de Bentinho, a dona Glória, “… filha de uma senhora mineira.” E a apresenta como mulher de respeito.” (…)
(Claudia Fazzolari, “Entre esposas e mulheres”. Discutindo Literatura Especial,
Ano 1, nº 1, Editora Escala Educacional, São Paulo/SP)
D. Glória
Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes.
Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia touca branca de folhos. Lidava assim, com os sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite.
Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que ela era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.
Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora1, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dois bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: “Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!” O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: “Vejam como esta moça me quer…” Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
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VOCABULÁRIO
Pandora1 – Foi a primeira mulher criada por Vulcano, segundo a mitologia grega. Minerva, a deusa da sabedoria, deu-lhe vida e saber. Júpiter deu-lhe uma caixa que continha todos os males e enviou-a à Terra para casar com Epimeto, o primeiro dos homens, o qual, abrindo a caixa fatal, deu origem a todos os males. No interior da caixa, apenas ficou a Esperança.
Camafeu – pedra semi-preciosa com duas camadas de cor diferente, numa das quais se talha uma figura em relevo.
Bandós – cada parte dos cabelos femininos que são repartidos no centro da cabeça, cujos fios são assentado em cada parte da testa e presos na parte de trás por um coque. Esse tipo de penteado só é possível fazer com cabelos compridos e era muito usado no século XIX.
Cordovão – calçado feito de couro de cabra curtido.
Boceta – caixinha redonda ou oval, onde se guardava pequenos objetos. No decorrer do século XX, esta palavra, no Brasil, adquiriu sentido chulo para indicar a parte externa dos órgão genitais femininos.
Fatídica – sinistra, trágica.
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Baseado nas informações sobre o papel da mulher, contidas nos textos apresentados, faça uma redação descrevendo o papel da mulher nos tempos atuais, fazendo um paralelo entre a mulher do século XXI e esta descrita nos textos.
Parabéns! Adorei a explanação e a proposta de redação!!