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Literatura BrasileiraPasso a Passo da Leitura Literária

DOM CASMURRO – Capítulos 8, 9 e 10

By 2 January 2011No Comments

DOM CASMURRO – Capítulos 8, 9 e 10

Machado de Assis usa, nestes três capítulos, uma metáfora para explicar a vida do personagem Bentinho. Compara a vida em sociedade a uma grande ópera com orquestra, atores, compositores e executores. Deixa transparecer assim, sua visão da sociedade do seu tempo.

A metáfora é uma figura de linguagem que consiste em utilizar uma palavra ou expressão em lugar de outra, por haver entre elas uma relação de semelhança. Toda metáfora é uma espécie de comparação implícita, em que o elemento comparativo aparece. No texto aparece a frase: “A vida é uma ópera…” em que o escritor estabelece traços de semelhança entre a vida e uma ópera. Ao longo dos textos ele passa a explicar sua tese e para isso, se vale de outras pequenas metáforas como “Deus é o poeta. A música é de Satanás…” referindo-se ao Criador do Universo e à ação de Satã aqui na Terra. Vale a pena ler esses capítulos e descobrir as metáforas utilizadas e suas relações com a vida das pessoas.

DOM CASMURRO – Capítulo 8

É TEMPO

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia… Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”, dizia um velho italiano que aqui viveu e morreu… E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha apena dá-la; é só um capítulo.

DOM CASMURRO  – Capítulo 9

A ÓPERA

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papeis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia1. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti2, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:

– A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados e a orquestração é excelente…

– Mas, meu caro Marcolini…

– Quê?…

E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel3, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele, expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu -, compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

– Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…

– Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

– Mas, Senhor…

– Nada! Nada!

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e  inventou um companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

–  Ouvi agora alguns ensaios!

– Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.

Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden4, a ária de Abel5, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são, aliás, tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.

Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e posto, seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor6. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.

– Esta  peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”7. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.

– Tem graça…

– Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré, etc8. Este cálix (e enchia-o novamente). Este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera.

DOM CASMURRO – Capítulo 10

ACEITO A TEORIA

Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor… Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A  mim é que ele me denunciou.

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Notas explicativas.

  1. Babilônia – Cidade situada à margem do Rio Eufrates, foi o centro do mundo conhecido durante o reinado de Nabucodonosor (604 a.C.). O poder militar e econômico ocasionou uma época de luxo, riqueza e desregramento onde imperava a corrupção em todas as classes sociais. Machado de Assis menciona a cidade para referir-se a uma sociedade arruinada pelo prazer irrefreado e devassidão.
  2. Chianti – Famoso vinho italiano produzido em Chianti, zona montanhosa da Toscana.
  3. Miguel, Rafael e Gabriel – os mais importantes anjos de que fala a Bíblia. Miguel expulsou o dragão (Satanás) e seus anjos, do céu (Livro de Apocalipse 12:7 a 9). Rafael  acompanhou o moço Tobias a Roges (Livro de Tobias 12:15 a 20). Gabriel anunciou a vinda de Jesus à Maria (Lucas 1:26 a 35).
  4. Terceto do Éden – o texto refere-se a Adão, Eva e a cobra (Gênesis 3:1 a 14). Machado de Assis utiliza a palavra que é usada para indicar uma música cantada por três pessoas.
  5. Ária de Abel – Abel e Caim eram filhos de Adão e Eva. Caim matou Abel por inveja (Gênesis 4:1 a 10). Machado de Assis refere-se especialmente ao versículo 10. Ária é uma música cantada por uma só pessoa, que faz parte de um conjunto de música, em geral peças de teatro.
  6. Mulheres Patuscas de Windsor – Trata-se de uma peça de teatro de Shakespeare, o maior poeta e dramaturgo inglês dos séculos 15 e 16.
  7. O trecho citado encontra-se em Mateus 20:16.
  8. Machado de Assis adaptou o versículo bíblico que se encontra no Evangelho de João 1:1 – “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus.”

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VOCABULÁRIO

Rabeca – espécie de violino de som fanhoso.

Sinfonia – música executada por uma orquestra de vários tipos de instrumento musical.

Ópera – drama cantado com acompanhamento de orquestra e/ou intercalado com diálogos ou recitativos.

Tenor – a mais aguda das vozes masculinas em um grupo vocal.

Barítono – tom de voz entre o tenor e o baixo.

Baixo – a mais grave das vozes masculinas em um grupo vocal.

Soprano – a mais aguda das vozes femininas em um grupo vocal.

Contralto – a mais grave das vozes femininas em um grupo vocal.

Comprimários – figurantes que se encarregam das partes secundárias das óperas.

Cálix – copinho para vinhos finos. A ortografia atual é: cálice.

Conservatório – estabelecimento de ensino das artes, principalmente da música.

Libreto – texto de ópera ou comédia musicada.

Partitura – escrita através de sinais gráficos musicais das partes vocais e/ou instrumentais de uma composição musical que permite a leitura simultânea dessas partes.

Grotesco – ridículo; que permite o riso ou o medo.

Excrescência – exagero.

Plagiário – aquele que imita ou que apresenta  um trabalho como sendo sua criação.

Estribilho – verso repetido ao final de cada estrofe ou composição poética; refrão.

Metafísica – estudo sistemático dos fundamentos da realidade e do conhecimento.

Verossimilhança – qualidade daquilo que tem aparência de verdadeiro.

Duo… trio… quatuor… – vocábulos latinos que significam dois, três e quatro, respectivamente. Machado de Assis refere-se à dueto, trio e quarteto.

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Baseado nos capítulos acima, identifique algumas metáforas utilizadas pelo escritor Machado de Assis e explique-as.

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